quinta-feira, novembro 06, 2014

DA PARA CONVIVER COM A SECA! SÓ TER APOIO E INICIATIVAS

Agricultor experimentador, educador popular e militante, seu Florisval conta sua história que se encontrou com a da ASA Alagoas desde o surgimento da rede estadual e nunca mais se distanciou
Daniel Lamir - Asacom
Recife - PE
05/11/2014
Seu Florisvaldo, agricultor que atuou diretamente na formação da ASA em Alagoas | Fotos: Moises Oliveira 
Há 15 anos, homens e mulheres tecem a rede de convivência com o Semiárido. Uma dessas pessoas é Seu Florisval Alexandre Costa, conhecido como Flor, morador do sítio Santa Rosa, no município de Craíbas, em Alagoas. Flor é ASA. O agricultor de 61 anos vivencia a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Flor atuou diretamente nos processos que resultaram na Articulação e hoje defende ainda mais conquistas para o Semiárido.
Em 2000, Seu Florisval fez articulações em 35 cidades alagoanas para dar vida à ASA Alagoas. A única pausa no trabalho aconteceu em 2007, por conta de um grave acidente. Recuperado, voltou a cuidar da própria agrofloresta e atuar como educador popular, além de ser uma referência como agricultor experimentador.
Para abrir este mês em que a ASA completa 15 anos de existência, entrevistamos Seu Florisval. O agricultor luta pelo novo imaginário da região através da história de envolvimento com sindicatos, igrejas, associações e organizações que formaram e formam a diversidade da ASA.
Na sua história de homem que nasceu e convive com o Semiárido, o senhor sempre lutou por mudanças. Poderia nos apresentar um pouco desta história?
Nosso Estado de Alagoas sempre foi muito carente no sentido de administração pública. Naquela época [década de 1960], principalmente, o governo não priorizava a educação. Eu não me conformava porque as pessoas entre 12 e 14 anos não sabiam ler nem escrever porque não tinha escola. Meu pai e minha mãe tinham 12 filhos e a gente tinha que ir para a roça para ajudar na manutenção da família. Isso me deixava inquieto. Então, fiz uma viagem [de Craíbas (AL)] para Olho D’água das Flores (AL) que me trouxe uma decisão que “ou eu fazia ou fazia”. Porque eu encontrei meninos e meninas com mais condição na educação, eles sabiam ler e escrever. A partir deste momento, fiquei arrasado, porque até para pegar o ônibus na viagem eu não sabia ler o itinerário e ficava perguntando às pessoas. Então, na volta, decidi mudar. Eu me organizei com um grupo de sete pessoas, entre irmãos e primos, para combinar com um amigo da comunidade que sabia ler e escrever. Fomos estudar. Ele nos ensinou as primeiras coisas da escola. A partir daí a gente começou a procurar, a cobrar do pessoal da administração [governamental] e começaram a surgir algumas escolas. Mesmo assim, as escolas ainda tinham muitas carências e algumas eram apenas passageiras nas comunidades. Funcionavam até dois anos. Então, a dificuldade sempre esteve presente na minha vida. Mas a gente não se conforma; não se entrega. Nos envolvemos nas lutas com a igreja, com jovens, sindicatos. Aqui também criamos o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Craíbas e sempre lutamos por mais escolas. Depois veio a luta pela terra. Fiz parte dos primeiros assentamentos daqui, numa época em que era muito perigoso. Estava arriscando a própria vida, numa época em que o pessoal perseguia mesmo. Acompanhávamos também outras lutas. Tínhamos encontros com os metalúrgicos em São Paulo, como Movimento Sem Terra, de lugares onde a luta era forte. A gente foi, aos poucos, se engajando e criando meios de participação dentro de associações, sindicatos e cooperativas. E assim a gente fez essa história. E foi muito difícil porque naquela época o pessoal não tinha essa ideia. Era uma coisa [ideologia política] nova, diferente.

Então como foi o desafio de fortalecer esse processo de resistência popular neste cenário, considerando que além da luta pelo direito à educação, também vivíamos o período da ditadura militar?
Eu me lembro que uma das coisas que movia a gente era também o pessoal da igreja. Tinha alguns padres que adotavam a Teologia da Libertação. Então a gente também se ajudava se esteando nessa história da igreja. Até que a gente participou de um movimento na época que se chamava ACR, que significava Animação dos Cristãos do Meio Rural. Tinha um padre francês que chegou aqui no Brasil, e no Nordeste principalmente, que começou a fazer uma evangelização mais voltada para a conscientização das pessoas. Era um trabalho que fazia um resgate e valorizava um pouco da vida das pessoas. Havia também uma tentativa de fazer com que as pessoas assumissem esse compromisso de luta. Acho que a igreja deu uma contribuição muito boa. Após isso, teve a Pastoral da Terra, que hoje é a CPT. Então, esses movimentos de igreja também deram sua colaboração ao movimento de agricultores e agricultoras. Então tudo isso junto fazia a gente resistir. A gente tinha pouca terra para uma família grande. Não dava nem cinco hectares e era para 12 filhos, em uma terra não muito boa. A gente tinha essa sede também da luta pela terra e se falava na reforma agrária. Íamos para encontros, reuniões para discutir a reforma agrária. E nessa questão da repressão a gente enfrentava. Tínhamos a nossa tática para não enfrentar de qualquer jeito. Tínhamos os nossos segredos, as nossas lutas. A gente se reunia muitas vezes até clandestinamente para não ser perseguido de forma tão forte pela ditadura e na esperança de termos o que temos hoje, a democracia. Fomos participando e conquistando, já que estávamos no movimento sindical, também surgiu a CUT, Central Única dos Trabalhadores. E fomos capacitados nos encontros, nos congressos das centrais sindicais, dos movimentos de igreja. Tudo isso junto fez com que a gente não largasse pé da caminhada e alimentasse a esperança. E aí é quando surgiu a ASA com essa força e essa garra, garantindo que a gente possa acreditar na convivência.     

Aproveitando este tema, podemos falar que a ASA surge, formalmente, em 1999. Porém, como estava o cenário de articulações por melhorias para Semiárido em Alagoas anos antes do nascimento formal da ASA?
Nós já tínhamos alguns movimentos aqui no Estado, como as associações. Por exemplo, a Associação de Agricultores Alternativos, a Cooppabacs [Cooperativa de Pequenos Produtores Agrícolas dos Bancos Comunitários de Sementes] e em alguns sindicatos já existia a ideia de convivência com o Semiárido. Existia a ideia de como melhor se conviver com esta região, já isso era visto como tão difícil. A agricultura era vista como de pouca chance para sobrevivência por conta do clima “pesado”. Eram anos com safra e outros sem safra. Tudo isso era uma preocupação e a gente continuava a lutar. Tinha o Grito pela Terra, que a gente juntava todas as entidades e passava dias na capital [Maceió], protestando, arrancando, de toda forma, uma audiência com os governadores e secretários. Íamos também atrás de prefeitos. A luta era sempre essa. Na época era luta por cesta básica. Tinha também as frentes de emergência que exigíamos para os pequenos produtores, luta pela água. Para Ater [Assistência Técnica e Extensão Rural], a gente também ia cobrar da Emater [Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural]. A gente sempre teve esse envolvimento e essa luta na perspectiva de melhoria de vida pela convivência com o Semiárido. E a gente conseguia se articular com os movimentos que tinham em outros estados também, como o Patac, na Paraíba – eu sempre fui um admirador do Patac -, depois apareceu o pessoal do Irpaa, de Juazeiro, na Bahia. E, entre 1998 e 1999, eu fiz o primeiro curso baseado na convivência com o Semiárido com o pessoal do Irpaa, com dois temas interessantes “Roça na caatinga e criação de pequenos animais” e “A busca da água no sertão”. Esses cursos me ajudaram muito. Foram 15 dias e a gente não tinha uma formação pedagógica e escolaridade completa, mas esse curso me ajudou muito a compreender a história da convivência. Então, a gente já tinha um pouco dessa caminhada nessa época.        

Do surgimento da ASA para os dias atuais se passaram 15 anos. O que mudou neste período?
"Precisamos ter uma luta melhor para garantir a reforma agrária"
Às vezes as coisas acontecem assim no dia a dia e as pessoas nem se percebem das mudanças que acontecem. Mas para quem viu a realidade da seca de 1979 a 1983, viu que morreram várias pessoas, principalmente crianças, por desnutrição e muitas vezes com a mãe sem condições de amamentar. Por exemplo, o nosso sindicato [Craíbas] perdeu várias pessoas. A água era poluída, era amarelada. Barro puro. Não tinha uma clareza de como tratar essa água. Não tinha essa discussão. A CPT, Cepac e Ibase colocam, por exemplo, na publicação Genocídio do Nordeste, que morreram um milhão e trezentas mil pessoas. Em alguns dias no sindicato chegávamos a contar 15 caixãozinhos de crianças passando para o cemitério, isso uma cidade que estava começando, que estava nos primeiros anos como município. Agora nesta seca [2011 a 2013], que eu considero bem pior que aquela, e a gente não tem notícia de gente que morreu. Por quê? Está aí com água de melhor qualidade para todo o nosso povo do Semiárido. Há uma orientação melhor para as famílias. Nós não fizemos só as cisternas, fizemos também todo um processo de formação com as famílias, desde o momento que fomos discutir nas associações, no sindicato, na cooperativa para que essas pessoas pudessem fazer parte da ASA que elas começam a ter uma outra noção de como viver nesta região. Além disso, há os cursos que temos realizado, como o GRH [Gestão de Recursos Hídricos] e o SISMA [Sistema Simplificado de Manejo de Água]. E além de tudo há o que nós representamos nas políticas públicas. Se não fosse a ASA talvez os governos não tivessem feito o que fizeram até agora, com os programas que estamos realizando. Então não podemos deixar de reconhecer que foi uma mudança profunda que garantiu a melhoria na convivência desta região. Sabemos que ainda tem o que se fazer. Tem famílias que a gente quer que participem do trabalho e essas famílias também querem participar, mas têm dificuldades. Por exemplo, a questão do microprodutor que conta com uma terra insuficiente, muito pequena. Às vezes não dá nem para fazer a cisterna-calçadão. Tem muitas famílias que estão fora deste processo ainda por conta disso. Precisamos ter uma luta melhor para garantir a reforma agrária. Os governos que elegemos precisam ter mais coragem e arregaçar as mangas. As famílias precisam ter ainda mais condições de vida. Os programas que conquistamos neste tempo têm dado uma boa contribuição. Agora precisamos intensificar essa luta para que aconteça muito mais. 
E como podemos intensificar essa luta, considerando que temos uma nova geração de jovens que não vivenciaram esses momentos distintos que você citou?Precisamos reativar mais a militância dentro dos movimentos sociais. E eu sou um pouco partidário. Acho ainda que precisamos melhorar também a militância dentro dos partidos. Quem faz parte dos partidos que contribuem com essa transformação precisa retomar. Percebemos que a juventude e algumas pessoas que não vivenciaram o que a gente vivenciou começa a acreditar em pessoas que vêm com outros papos dizendo que vai fazer uma mudança. Acho que começa a se embebedar dessa coisa que alguns espertos querem fazer no Brasil, dizendo que precisa de mudança.
Agora, quais mudanças? A gente precisa perguntar isso. Eu tenho feito isso nas próprias discussões da ASA nos cursos que realizamos. A gente precisa saber das pessoas sobre que mudança elas querem. Como era antes? A gente precisa fazer esse resgate. Precisamos dessa injeção pela militância e na juventude, principalmente, para que a gente possa fazer esse resgate. Eu e muitas pessoas da minha idade fomos criados analfabetos ou semianalfabetos.

Cisterna de água de beber disseminada pelo Semiárido a partir da ação da sociedade civil
Hoje eu tenho filho que está fazendo intercâmbio no Canadá. São muitos jovens se capacitando para o mercado de trabalho para ter uma vida digna na sua região. Aqui em Craíbas eu conheço um cidadão que ensinou 12 anos em apenas 90 dias de Mobral. Hoje, todos os filhos e filhas dele estão concluindo a faculdade. Então precisamos dizer a esses jovens que essas coisas mudaram e que a gente mudou. Não foi só o governo que mudou, mas a sociedade mudou. E precisamos dizer que os movimentos sociais deram uma contribuição muito grande para esta mudança. E a ASA, eu acredito e sempre defendo onde for, tem dado uma grande contribuição. Estamos discutindo a agroecologia, a desertificação, a garantia das fontes, das nascentes, um pouco de todo o trabalho que a gente faz. E ter um discussão dessa formação que dê condições para a convivência. Acho que a gente precisa estar sempre dizendo isso. Precisamos ter esse compromisso. Eu acredito neste fluxo. Eu não sou pessimista. Avançamos e vamos avançar mais. Não podemos nos entregar. Somos capazes, precisamos ter essa certeza de que a cada dia estamos passando esta mensagem e essa esperança.

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