terça-feira, setembro 20, 2011

CULTURA- A HISTORIA DE UMA MULHER GUERREIRA, GUERREIRA MESMO.



E Anésia contou:
" Os Cauaçus eram comerciantes e lavradores. Fazendeiros, possuindo algum capital, com muitas cabeças de gado, foram sempre muito considerados em Jequié, Brejo Grande, Conquista, Maracás, Amargosa e Boa Nova, negociando com as principais firmas do sertão baiano, dispondo de muito crédito e bom conceito.
Jornal ATARDE, 25.10.16, p. 1.

Os Cauaçus fizeram lenda numa vasta região que se inicia na Chapada Diamantina e chega até a caatinga de Jequié, Maracás e vizinhanças, onde desde o século XIX se destacaram pela coragem e bravura. Em nossa região, a parte da família que aqui vivia como pacatos agricultores e criadores de bode e gado, terminou empurrada para a luta armada, quando um de seus membros foi assassinado a mando de Zezinho dos Laços, personagem que aterrorizou a região por várias décadas.

Anésia era uma Cauaçu de fibra. Alta, esguia, olhos azuis, não tinha o perfil da catingueira. Casada, mãe pelo menos de uma filha, viu-se envolvida nas lutas que se seguiram contra o bando de Zezinho dos Laços, Marcionílio e Tranqüilino Sousa, além da própria polícia. Viu morrerem pais e irmãos, bem como vários membros de seu bando; viu também sua mãe ser presa e torturada, nem assim jamais se abateu. Nas lutas em que se envolveu, logo adquiriu fama de exímia atiradora, de pontaria melhor que os homens do bando, capaz de acertar o dedo de um militar que apontava a seus comandados a direção onde estavam os Cauaçus, a mais de 300 metros de distância!


Anésia foi presa em 1916 e solta em seguida. Por volta de 1930, ao que se sabe, vivia na região de Ilhéus. Não se tem notícia da data de sua morte nem do que teria acontecido a sua filha.

Zezinho dos Laços foi morto numa emboscada preparada pelos Cauaçus. O banditismo na região de Jequié sofreu forte baixa a partir da Revolução de 1930, com as prisões de Marcionílio e de seu filho Tranqüilino Sousa. Capitão Silvino de Araújo, que às vezes lutava contra os homens de Marcionílio e, em outras, contra os próprios Cauaçus, por apoiar o movimento de 30, recebeu as graças do governo revolucionário.

De seu lado, Anésia passou à história como uma figura única de mulher " mãe e guerreira. Seu vulto histórico se amplia o passar do tempo.

Um depoimento.

Lembro do momento em que meus olhos se iluminaram, pela primeira vez, diante de Anésia Cauaçu. Ao nos fazer retornar às passagens mais significativas de nossas vidas, a memória elege imagens, momentos, palavras, cheiros... que funcionam como símbolos de ligação entre essas lembranças e o que as faz despertar, quando reativadas no presente. Sendo essa premissa válida, diante de tantas verdades, lembro-me agora do momento exato em que a figura de Anésia Cauaçu surgiu aos meus olhos. E foi tamanha sua imensidão e tanto o meu fulgor que mal pude conter-me de alegria e prazer. Era meu último dia em Salvador, um sábado, na sede do jornal ATARDE, na seção de arquivo onde pesquisava. A funcionária do setor gentilmente me avisou faltarem dez minutos para o fim do expediente, e eu já havia extrapolado o prazo inicial estipulado. Passei a ser mais rápida na leitura dos microfilmes sobre o inquérito policial aberto para apurar as arbitrariedades da polícia contra os Cauaçus, motivo inicial de minha investigação. E quando a moça me alertou que o tempo havia terminado, rodei ainda pela última vez a manivela da máquina de microfilmagem, e para minha surpresa lá estava ela, seu nome em letras garrafais, matéria de primeira página. Se isso não bastasse, havia uma foto, estragada pelo tempo naquela edição de 25/10/1916. Anésia não estava sozinha " estava de pé, altiva, com uma menina risonha e descalça, também de pé, trepada num banquinho desses de madeira tosca, encontrados em tantas casas de roça. A menina era sua filha. Ali estava a Anésia mãe que, como qualquer mãe, na hora da refeição, pega seu filhote e vai alimentá-lo com um prato de arroz e feijão, carne de sol ou carne seca, quase sempre misturados com farinha de mandioca. Assim a víamos " prato de comida na mão, um pano jogado ao ombro à frente daquela que podia ser tanto sua casa quanto um outro lugar onde se arranchara. Essa a imagem.

Busquei ler suas declarações naquele jornal. E como que transportada, imaginei Anésia falando. Quase podia ouvi-la narrar parte de sua vida e da vida de sua família. A materialização selou de vez meu compromisso com aquela mulher, que me deixava a um só tempo intrigada e deslumbrada.

No momento seguinte, paradoxalmente, me decepcionei. Foi bom achar ali a foto de Anésia. Mas já que havia a foto, porque não estava ela vestida de guerreira, com suas armas, suas cartucheiras, seu chapéu, a "bandida" construída pelo meu imaginário, cuja representação estava nas imagens de célebres cangaceiros, em reproduções de Lampião e sua companheira Maria Bonita?


Decepção momentânea, nada disso importava. O que mais sentia era a satisfação do ser capaz; de quem, diante de tantos caminhos (como Alice, a do País das Maravilhas) a escolher qual me levaria a melhor seguir para encontrar as respostas a minhas indagações ante o desconhecido. Naquele momento, outras tantas questões se estruturavam e me faziam pensar que a partir de então todo um universo se descortinava. Agora era organizar melhor as informações para tentar contribuir no preenchimento da grande lacuna existente na história das mulheres bandidas, que atuaram à margem ou ao lado dos homens.

Anésia representa o símbolo da coragem e do destemor na região de Jequié. E entre suas características mais notáveis percebe-se o amor que devotava à família. Diria mesmo que foi esse amor o elemento primordial capaz de fazê-la imprimir sua marca e perpetuar-se na memória coletiva como mulher respeitada pela valentia e pela força em combate. Como outras mulheres guerreiras de seu tempo, que também vivendo na caatinga tornaram-se símbolo de força e resistência. Mulheres sobreviventes à rudeza da terra e às lutas constantes por poder e demarcação de territórios.

Essa a lembrança que me surgiu quando pretendi iniciar meu depoimento, de modo a apresentar Anésia Cauaçu com a mesma emoção com que ela chegou a mim. Imagem e voz.


Anésia Cauaçu " mulher, mãe, guerreira pertenceu a um momento singular da história da região " o banditismo. A mulher-bandida que em determinado momento chegou a liderar seu bando e nele imprimir sua marca de coragem e valentia. Talvez sua característica seja a de exímia atiradora, pela qual se fez respeitada em toda a região, de Maracás a Jequié e vizinhanças. Sua história é formada, em verdade, de muitas histórias.

Esse é um fragmento da memória de quem, como pesquisadora, viveu em Anésia, uma longa trajetória ainda inacabada.


MARCIA DO COUTO AUAD
Mestra em Memória Social e Documento (UNIRIO)
Professora da UNEB-Campus Ipiaú
todas as imagens foram extraidas do site google.

Web site: www.jequienoticias.com.br/arquivos_ver.php?id=0151 Autor: MARCIA DO COUTO AUAD

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