Num país que aumenta o
número de parlamentares conservadores e onde o aborto ainda é um tabu, a Câmara
dos Deputados mostrou que pretende trabalhar para rever a decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF), o qual considerou que aborto até os três meses não é
considerado crime. Na tribuna da Câmara, onde acontecia a votação das dez
medidas contra a corrupção, deputados – especialmente os que formam a bancada
evangélica – aproveitaram os holofotes para protestar contra o Supremo.
O deputado Evandro
Gussi, líder do PV, afirmou que a decisão do STF revoga o Código Penal, que só
admite a interrupção da gravidez em caso de estupro e quando a mãe corre risco
de morte. “Revogar o Código Penal, como foi feito, trata-se de um grande
atentado ao Estado de direito. O aborto é um crime abominável porque ceifa a
vida de um inocente”, disse.
Cedendo à pressão de um
Congresso de maioria conservadora, e de olho nas eleições para a presidência da
Câmara em fevereiro, o presidente da Casa, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ),
anunciou, na mesma noite, a instalação de uma comissão especial no intuito de
rever a decisão do Supremo. “Informo ao plenário que eu já tinha conversado
desse assunto com alguns líderes que, do meu ponto de vista – e vou exercer o
poder da presidência – toda vez que nós entendermos que o Supremo legisla no
lugar da Câmara dos Deputados ou do Congresso Nacional, nós deveríamos
responder ou ratificando ou retificando a decisão do Supremo, como a de hoje”,
disse Maia.
Mas segundo Ivar
Hartmann, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio, a Câmara não
pode revogar uma decisão do Supremo. “Os deputados podem produzir uma alteração
na lei ou na Constituição, mudando aquilo que o Supremo usou como fundamento da
sua decisão”, explica. “Mas rever uma decisão do Supremo, eles não podem“.
O voto do ministro Luís
Roberto Barroso, que alcançou a maioria dos ministros da primeira turma da
corte, é baseado no argumento de que a criminalização do aborto é incompatível
com diversos direitos fundamentais. Dentre eles, os direitos sexuais e
reprodutivos e a autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da
gestante e o princípio da igualdade, “já que homens não engravidam e, portanto,
a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa
matéria“, segundo o voto do ministro.
Hartmann explica que
esses princípios usados pelo ministro Barroso fazem parte de cláusulas da
Constituição que não podem ser mexidas. “O direito fundamental à liberdade é
uma parte da Constituição que não pode ser alterada”, explica. “Os deputados
até podem colocar algo no Código Penal que explicite que o aborto é crime mesmo
quando praticado nos três primeiros meses da gestação“, diz o professor. Mas,
de acordo com ele, o Congresso não poderá mudar os princípios argumentativos
utilizados pelo ministro Barroso.
PEC disfarçada
A contraofensiva da
Câmara foi imediata à decisão no STF. A comissão de deputados foi criada já na
madrugada da quarta-feira (30/11), durante a sessão na Casa. Será composta de
33 membros que discutirão a PEC 58/2011, que na verdade trata de ampliar a licença-maternidade
para mães de bebês prematuros. Originalmente, o texto dessa Proposta não
menciona nada sobre a criminalização do aborto. Mas, como a discussão sobre o
tema foi levantada pela decisão do Supremo, os deputados aproveitarão essa
comissão para apresentar uma emenda ou substitutivo para essa proposta que
trate do assunto. É o que se chama de ‘jabuti’, quando um tema estranho à
proposta original, é inserido num projeto de modo que possa passar longe dos
holofotes.
O professor Ivar
Hartmann ressalta que o legislador não poderá decidir se dá ou não o direito ao
aborto para as mulheres. “Isso faz parte de garantias mínimas que o legislador
não tem competência para retirar das pessoas. Especialmente quando se fala de
proteção a minorias, e as mulheres no Brasil formam um grupo historicamente
reprimido ou que tiveram acessos negados a bens da sociedade“, diz. “E
inclusive a falta de representatividade do Congresso é um motivo a mais para
que o Supremo proteja as mulheres“.
Mas essa não é a única
ofensiva do Congresso à descriminalização do aborto. Uma discussão recente foi
sobre o PL 5069, que dificulta o atendimento a vítimas de abuso sexual,
colocando, inclusive, a prescrição da pílula do dia seguinte em xeque. O
projeto tramitou no ano passado e sofreu forte reação nas ruas. Foi aprovado
pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, mas não foi a votação
no plenário. Como esse, mais de 30 projetos tramitam sobre o assunto. Mais da
metade deles preveem endurecer a punição para o aborto, segundo levantamento
realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo.
Congresso x Supremo
Essa não é a primeira
vez que o Supremo toma uma decisão de cunho progressista e o Congresso tenta
retroceder depois. Em 2011, os ministros do STF aprovaram, por unanimidade, que
as uniões homoafetivas deveriam ter os mesmos direitos que uniões
heterossexuais. Desde então, casais homossexuais têm direitos como herança,
benefícios da Previdência, inclusão como dependentes em plano de saúde e
adoção, dentre outros direitos. Mas, desde 2013 tramita na Câmara o chamado
Estatuto da Família, que define como entidade familiar apenas o “núcleo social
formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou
união estável ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes”. Ou seja, exclui por completo a possibilidade de união entre
pessoas do mesmo sexo perante à lei.
Foi no Supremo também
que se decidiu, em 2012, que aborto de fetos sem cérebro (anencéfalos) não é
crime. Na época, deputados também foram à tribuna incomodados com a
“intromissão” do STF na legislatura. “O que ocorre nesse julgamento, mais uma
vez, lamentavelmente, em função do ativismo judicial que o Supremo vem
praticando, é uma usurpação de competência. Essa matéria é de competência do
Parlamento e não do Judiciário”, criticou o deputado João Campos (PSDB-GO),
então presidente da Frente Parlamentar Evangélica.
Apesar das
contraofensivas, o Supremo continua debatendo temas tabus para a sociedade
brasileira enquanto o Congresso se opõe. Na semana que vem, está marcada no STF
o julgamento da ação que pede a liberação do aborto em gestantes infectadas
pelo vírus da zika. A questão ganhou importância desde o ano passado, quando o
Brasil viveu um surto da doença que pode causar microcefalia em bebês. Na
época, a ONU chegou a defender o acesso ao aborto nos países atingidos pela
doença. (fonte: El País/foto: Fernando Frazão)
Carlos Britto
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